"O chefe da polícia / pelo telefone / manda avisar / que na Carioca / tem uma roleta / para se jogar...". O samba Pelo Telefone (1917) foi o primeiro a ser gravado no Brasil. A inspiração foi uma manchete de jornal: "O jogo é franco — Uma roleta em pleno largo da Carioca", lia-se na capa do A Noite de 2 de maio de 1913.
"O objetivo era denunciar a conivência da polícia com os jogos de azar", explica o historiador Luiz Antônio Simas, coautor de Dicionário da História Social do Samba (2015).
Os repórteres Eustáquio Alves e Castelar de Carvalho, disfarçados de crupiês, montaram em 1º de maio daquele ano, uma roleta no Largo da Carioca, no Centro do Rio, onde funcionava a antiga sede do jornal. Um cartaz dizia: "Jogo franco! Roleta com 32 números. Só ganha o freguês".
A curiosa história da primeira torre de controle para aviões - erguida há 100 anos
Dubrovnik, a cidade medieval planejada para a quarentena
Os jornalistas queriam ridicularizar o chefe de polícia, Belisário Távora. Dias antes, ele havia declarado que a jogatina continuaria liberada até que o governo se pronunciasse sobre o caso.
O episódio, como já era de esperar, terminou em confusão. A polícia tentou desmontar o "cassino" improvisado, mas a população não deixou. Jornalistas e populares foram parar na delegacia.
O caso estamparia as páginas do A Noite no dia seguinte e levaria os compositores Ernesto dos Santos, o Donga (1890-1974), e Mauro de Almeida (1882-1956) a criar a canção que se tornaria um marco da música brasileira.
Mas esta não a única vez que o jornal carioca faria história. A redação do jornal se mudou para o número 7 da Praça Mauá, também no Centro do Rio, onde foi inaugurado em setembro de 1929 um edifício em estilo art déco de 22 andares.
Com 102 metros de altura, era o maior do Brasil na época — título que manteve até 1934, quando foi concluído o edifício Martinelli, em São Paulo, com seus 26 andares.
De tão famoso, o A Noite emprestou seu nome ao primeiro arranha-céu da América do Sul, cujo "nome de batismo" era em homenagem ao arquiteto francês Joseph Gire (1872-1933), que o projetou a quatro mãos com o arquiteto brasileiro Elisário Bahiana (1891-1980).
"A construção do edifício A Noite foi um feito mundial. Durante muito tempo, foi a maior estrutura de concreto armado do mundo. Na época, os prédios eram construídos com estrutura de metal. Os engenheiros diziam que o concreto era muito pesado", explica o artista plástico Roberto Cabot, bisneto do arquiteto francês e autor de Joseph Gire - A Construção do Rio de Janeiro Moderno (2014). "Meu bisavô defendia a verticalização como a única saída para as cidades do futuro."
Hoje tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 2013, o edifício A Noite deverá ser leiloado até o fim do ano, em evento virtual. Está avaliado, segundo a Secretaria de Patrimônio da União (SPU), em R$ 90 milhões. O governo federal alega que o arranha-céu tem um alto custo de manutenção: cerca de R$ 300 mil por mês.
Nelson Rodrigues, Lima Barreto e Clarice Lispector
Um dos primeiros jornais populares do Rio de Janeiro, o A Noite chegou a ter cinco edições diárias e uma tiragem estimada de 200 mil exemplares. "Era o diário de maior circulação do país", afirma o jornalista Matías Molina, autor de A História dos Jornais no Brasil (2015).
Desde sua fundação, em 18 de julho de 1911, até a data de sua última publicação, no dia 31 de agosto de 1964, o jornal teve inúmeros donos — o primeiro foi Irineu Marinho (1876-1925), o mesmo jornalista que, em 1925, fundou o jornal O Globo — e incontáveis fases, de "governista" a "oposicionista".
Segundo o historiador Milton Teixeira, a redação chegou a ser invadida em duas ocasiões: na revolução de 1930, quando "o lustre do hall foi estilhaçado e um piano de cauda, arremessado pela janela", e no golpe de 1964, quando "militares efetuaram prisões e jogaram máquinas de escrever pelas janelas".
Um dos muitos leitores famosos do A Noite era o jornalista Nelson Rodrigues (1912-1980), que chegou a lhe dedicar uma crônica, na qual escreveu: "Estou certo de que, se saísse em branco, sem uma linha impressa, todos comprariam A Noite da mesma maneira e por amor".
Também trabalharam para o jornal os escritores Lima Barreto (1881-1922), que publicou, entre os meses de março e julho de 1915, o folhetim Numa e a Ninfa, em 52 edições, e Clarice Lispector (1920-1977), que, entre fevereiro de 1942 e janeiro de 1944, exerceu as funções de repórter, tradutora e redatora.
"Na redação, Clarice passava por situações constrangedoras, quando o redator de polícia começava a falar palavrões como quem toma um copo d'água. A cada quatro palavras, dizia três palavrões, e Clarice estremecia", revela a biógrafa da escritora, Teresa Montero, autora de O Rio de Clarice - Passeio Afetivo pela Cidade (2018).
Edifício mudou a paisagem do Rio
Quando foi inaugurado, em 1929, o edifício A Noite mudou a paisagem urbana do Rio, dominada por sobrados e casarões.
Os prédios mais altos da então Avenida Central, atual Rio Branco, não passavam de oito andares. O maior deles era o prédio do Jornal do Brasil, com inacreditáveis dez andares.
"O mirante do edifício A Noite, no último andar, era o mais visitado da cidade", recorda o marchand Márcio Alves Roiter, presidente do Instituto Art Déco Brasil. "Isso, até ser inaugurado, em 12 de outubro de 1931, o Cristo Redentor, outra proeza do concreto armado."
O edifício foi erguido no lugar do Liceu Literário Português, instituição de ensino que se mudou para o Largo da Carioca, onde funciona até hoje.
Formado pela Escola Nacional de Belas Artes de Paris, o arquiteto Joseph Gire veio ao Rio em 1916, a convite do empresário Octávio Guinle (1886-1968), um dos homens mais ricos do país.
Gire deixou sua assinatura nos hotéis Glória, inaugurado em 1922, e Copacabana Palace, em 1923, e nos palácios Laranjeiras, de 1909, a residência oficial do governador, e de Brocoió, de 1930.
O engenheiro responsável pela obra foi o brasileiro Emílio Baumgart (1889-1943). O edifício levou dois anos para ser concluído.
A maior rádio da Américas
O edifício A Noite não ganhou fama apenas por abrigar a redação do jornal de mesmo nome. Foi lá também onde funcionou a Rádio Nacional, fundada em 12 de setembro de 1936.
Na década de 1940, a rádio chegou a ocupar cinco andares do imponente edifício. "A Nacional foi a maior rádio das Américas e uma das maiores do mundo. No auge, teve um elenco de mais de 120 atores contratados, sete orquestras e quatro maestros", diz Teixeira.
Algumas das maiores celebridades da época, como Francisco Alves (1898-1952), Dalva de Oliveira (1917-1972), Emilinha Borba (1923-2005), Orlando Silva (1915-1978), Cauby Peixoto (1931-2016) e Ângela Maria (1929-2018), se revezaram nos programas da rádio e atraíram multidões de fãs.
Quem não conseguia assistir ao show do auditório, tinha que se contentar em ver seus ídolos no saguão ou na calçada do prédio.
"A cantora Marlene deixava subir no elevador alguns de seus jovens fãs gays que os seguranças tentavam barrar na entrada", conta o jornalista, pesquisador e crítico musical Rodrigo Faour, autor das biografias Bastidores — 50 anos da Voz e do Mito (2001), sobre o Cauby Peixoto, A Noite e As Canções de Uma Mulher Fascinante (2012), sobre Dolores Duran, e A Eterna Cantora do Brasil (2015), sobre Ângela Maria.
O marchand Márcio Alves Roiter subiu e desceu inúmeras vezes nos elevadores do edifício e diz que, até hoje, consegue ouvir os avisos de "sobe!" e "desce!" dos ascensoristas. Quando criança, ele acompanhava a mãe, Maria de Lourdes Alves, que apresentava o programa Clube Juvenil Toddy, toda quinta-feira, de 1950 a 1960.
"Não me esqueço do dia em que pegamos o mesmo elevador que o Pixinguinha", recorda Roiter. "Vestido em um terno branco, era a elegância em pessoa!"
Comunistas presos e LPs arremessados pelas janelas
A Rádio Nacional chegou a ter três programas de auditório, todos de muito sucesso: dos radialistas César de Alencar (1917-1990), Paulo Gracindo (1911-1995) e Manoel Barcellos (1911-1983).
Mas, a rádio também produziu radionovelas, como O Direito de Nascer, escrita pelo cubano Félix Caignet (1892-1976); jornalísticos, como o Repórter Esso, apresentado por Heron Domingues (1924-1974); e humorísticos, como o Balança, Mas Não Cai, estrelado por Paulo Gracindo e Brandão Filho (1910-1998), entre outros, que interpretavam o quadro "Primo Pobre & Primo Rico", criado por Max Nunes.
Outro programa de audiência era A Felicidade Bate À Sua Porta, comandado pela atriz Yara Salles (1912-1986) e o compositor Lamartine Babo (1904-1963).
"O programa sorteava casas no subúrbio e mandava o ator Heber de Bôscoli, marido de Yara, ver se a dona de casa tinha a cera, a pasta e o sabão Cristal. Se tivesse, ganhava um prêmio em dinheiro e a chance de assistir a cantora Emilinha Borba ao vivo na rádio", explica Faour.
No golpe de 1964, a rádio não escapou da ação dos militares. "Foram demitidos todos os 'comunistas' da Rádio Nacional: do dramaturgo Dias Gomes (1922-1999) ao ator e compositor Mário Lago (1911-2002)", relata Teixeira..
Além de pianos de cauda e máquinas de escrever, muitos LPs foram arremessados pelas janelas do edifício A Noite. "Por ocasião do golpe de 1964, sobrou até para os cantores Jorge Goulart (1926-2012) e Nora Ney (1922-2003), que pertenciam ao Partido Comunista", afirma Faour.
Inquilinos famosos
O A Noite ainda abrigou consulados, repartições do governo e escritórios de despachantes.
Também teve inquilinos famosos, como o arquiteto Lúcio Costa (1902-1998), que contratou como estagiário um jovem estudante de Arquitetura chamado Oscar Niemeyer, então com 23 anos.
O contraventor Manuel da Silva Abreu, o Zica, abriu uma boate, a Flórida, no térreo do edifício e, reza a lenda, inspirou o cantor Chico Buarque a criar Max Overseas, o golpista de A Ópera do Malandro (1978).
"Era o maior contrabandista do Brasil e tinha estreitas ligações até com presidentes da República", afirma Teixeira.
O edifício também abrigou as sedes do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e de empresas, como a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a última a deixar o local, em 2012.
Fechado desde então, o A Noite está abandonado, cercado por tapumes e com pichações na fachada. A construção hoje destoa em uma Praça Mauá reformada, após o projeto de revitalização da zona portuária do Rio.
O governo federal diz que o edifício, com uma vista privilegiada para a Baía de Guanabara, tem potencial de ser transformado em um grande hotel ou mesmo adaptado para uso residencial.
A expectativa é que o leilão atraia novos donos interessados em fazer com que o A Noite tenha um futuro tão glorioso quanto seu passado.
from R7 - Brasil https://ift.tt/2YI3jAX
via IFTTT
Nenhum comentário:
Postar um comentário